22 fevereiro 2007

Gostei tanto ...

... que vou dar o destaque de comentário do dia! Obrigado JG


Um assunto sem assunto
"Para lá das cartas, o resto das conversas sobre o amor são ridículas. Na alegria e na tristeza, na infelicidade ou na mais extremosa felicidade. Há, mesmo assim, diferenças: por muito penoso que seja ouvir a história de um amor infeliz, nada se compara à dura realidade (mesmo para o interlocutor voluntário) de uma história de amor feliz.Na infelicidade resta algum assunto (bater no omnipresente ceguinho, a opção favorita). Ainda assim, a infelicidade produz no interlocutor alguma sensação de utilidade - por mor da psicologia de vão de escada ou da confissão de religiosidade duvidosa. É pouca coisa, mas alguma. Não é edificante, mas é um assunto.A Vanessa vive momentos terríveis (para mim). Caiu no mais estranho dos lugares, o da felicidade sem medida. Acorda-me a desoras para contar como "ele" é fantástico, maravilhoso, surpreendente, perfeito, primoroso, impecável, admirável, quase sobrenatural. Nos jantares, a coisa prolonga-se (três ou quatro horas seguidas a descrever a bem-aventurança, a fortuna, a delícia, o contentamento, a beatificação, o beato). Dói-me a cara - já aguentei três horas com o mesmo sorriso de complacência, muito cansativo. Às vezes tenho saudades de discutir política. De uma boa polémica. De uma notícia. De algo. Adorava falar de algo, de um assunto qualquer que não fosse o maior dos sem-assuntos: a paixão, feliz, banalmente feliz, exaustivamente feliz em todas as acepções.Nos intervalos do discurso glorificador do Outro, a Vanessa recebe sms do Outro. Toda a mesa do jantar é abalada. Por um lado, podemos suspender o sorriso; por outro, é um momento suspenso: convergimos todos para o telemóvel, à espera que o esgar de felicidade traga uma notícia. Mas não há notícia. Quando perdura, a paixão não é notícia. O amor feliz não é notícia. Não se passa nada. Não há lead, não há tema, não há assunto. Sim, estamos felizes, contentes, alegres por ela, e depois? A Vanessa asfixia-nos. Massacra-nos. Humilha-nos. Não há criatura mais arrogante que a plena de felicidade. Mas se percebe alguma resistência faz um lamento. - Era bom ter alguém para partilhar isto. À excepção de um hipotético outro amor, mais ninguém aguenta."
Ana Sá Lopes
Diário de Noticias